O sábio que se esqueceu
A comemoração dos 80 anos de Benedito Nunes fez-lhe justiça, um dos maiores intelectuais que o Pará já teve. Benedito pôde constatar em vida que seu valor foi reconhecido na terra natal, onde o profeta costuma ser maltratado. Foi o que aconteceu a outra das grandes cabeças do Estado, privada de testemunhar o reconhecimento do seu valor. Eidorfe Moreira morreu em janeiro de 1989, aos 77 anos, quase no anonimato e às proximidades da pobreza. Amargurado e triste.
Foi o principal dos nossos geógrafos. O filósofo da geografia, disse-o eu numa extensa matéria sobre ele que publiquei em A Província do Pará, jornal no qual ele colaborou durante quase meio século. O geógrafo da filosofia, completou Benedito Nunes. Podíamos cruzar os dois títulos para sermos mais completos, ainda assim sem chegar ao significado total da vasta produção (reunida em 18 livros; o 19º ficou inconcluso) desse paraibano, que veio adolescente para o Pará e daqui nunca mais saiu (nem para passear). Eidorfe foi uma pessoa de extrema e fina sensibilidade. Apreciava a boa literatura a ponto de ser um excelente crítico. Cultivava essa vertente do seu espírito lendo os melhores críticos literários. Alguns dos seus ensaios sobre escritores tão variados como Guimarães Rosa e Clarice Lispector mostram a sua capacidade de observação. A imagem do sertão que captou em vários textos da literatura brasileira é primorosa. Ele tinha o raro dom de sentir o pleno prazer da leitura e poder transmitir sua apreciação aos demais, sem perder o frescor da sua experiência pessoal e inserindo suas anotações no conjunto do pensamento organizado, por obra e graça do seu rigor metodológico, ainda que autodidata (como o próprio Benedito).
Eidorfe morreu com um traço de amargor e talvez de indignação. Em parte por conseqüência da perda do braço esquerdo, vitimado que foi pela violenta repressão da polícia de Magalhães Barata contra os estudantes do Colégio Estadual Paes de Carvalho, que manifestavam sua adesão ao movimento constitucionalista liderado por São Paulo em 1932 contra os primórdios da ditadura de Getúlio Vargas. Um tiro de fuzil que atingiu seu braço exigiu-lhe a amputação. A partir daí ele ficou ainda mais introspectivo, praticamente anti-sociável.
Não era fácil conviver pessoalmente com ele, reclamavam seus amigos, que acabaram se tornando poucos, mas permaneceram-lhe fiéis até o fim. Eidorfe se tornou um homem recluso, que reagia às vezes de forma agressiva às abordagens. Mas esse era um mecanismo de defesa, disparado pelo rancor que restara das infelicidades da vida. Ultrapassada a muralha de pedregulhos, ele se dispunha a conversar pacientemente e a ensinar.
Mas era por escrito que sua alma atormentada, inteligente e perceptiva melhor se expressava. O que deveriam ter feito as entidades culturais? Assegurado a esse cérebro poderoso as melhores condições para ler, anotar e escrever. Assim Eidorfe teria realizado sua vocação de monge leigo, o que, no fundo, ele sempre foi. Pelo contrário, sua atividade solitária de pensador e sábio foi cerceada pelos grilhões da incompreensão e da burocracia estatal.
Dentre meus papéis avulsos, revirados a esmo, encontrei os documentos da contenda que ele travou com os pareceristas da Universidade Federal do Pará em torno da sua aposentadoria e, uma vez que ela não se consolidou como ele pretendia, seu retorno à atividade para ter uma melhor remuneração. Digamos que os doutos jurisconsultos tivessem razão e que, uma vez feito o desligamento para a aposentadoria (por velhice), substituída por um simples pecúlio, nada mais pudesse ser feito. Rejeitado o pedido do professor-pesquisador e arquivado o processo, a Universidade concederia os títulos de notório saber e doutor honoris causa a Eidorfe e lhe daria uma cátedra honorária, com a qual ele receberia um cubículo e lá poderia continuar a ler e a escrever para proveito imenso de todos nós, com uma remuneração decente.
Dois professores tentaram evitar o desfecho insensato, sem conseguir que as luzes da inteligência prevalecessem sobre a letra morta das normas burocráticas. Em 18 de junho de 1987 Eidorfe mandou uma carta aos dois professores agradecendo por suas infrutíferas intervenções no processo kafkiano e finalizando com um tom de amargura:
“Mas o que importa salientar no caso é o ato de amizade e apreço que os caros colegas tiveram para comigo - ato tão raro, nobre e belo - que me fez obscurecer na memória, ainda que temporariamente, lamentável problema em que me vi imprevistamente envolvido na Universidade”.
Alguns poderão alegar que o modo ranzinza de ser de Eidorfe o condenou à solidão e ao ostracismo, o que talvez até fosse uma observação verdadeira. Mais importante do que o seu azedume, porém, era a sua luminosa inteligência, o seu imenso valor intelectual e humano, que devia prevalecer sobre tudo mais, não só para minorar as angústias do personagem, mas, sobretudo, para beneficiar a sociedade com a fecunda produção de Eidorfe.
No meio dos papéis avulsos encontrei também um ofício que ele endereçou, em janeiro de 1985, ao então prefeito Almir Gabriel (nomeado para o cargo pelo governador Jader Barbalho). Era para agradecer pela sua indicação para receber a medalha Francisco Caldeira Castelo Branco, a maior honraria do município da capital, pelos serviços que a ela teria prestado. Mas também para informar “que, por motivos ligados à minha formação, formação que se traduz em certo estilo de vida, não costumo aceitar títulos honoríficos de qualquer natureza, pelo que me vejo obrigado a declinar de tão alta honraria e distinção”.
Acrescentava diplomaticamente que a recusa à honraria (”mera questão de foro íntimo”) nada importava “e sim que se reconheça a elevada significação que ela encerra como estímulo e como deferência”. Por isso, pedia ao prefeito que recebesse o testemunho do seu “profundo reconhecimento por tão nobre e desvanecedora prova de atenção à minha pessoa”.
Prova maior viria apenas pós-morte, quando o prefeito Hélio Gueiros, concunhado de Eidorfe, pelas mãos de sua esposa, a professora Terezinha Gueiros, editou as obras reunidas do professor, em sete volumes, em publicação canhestra, mas valiosíssima, que mais ficou estocada em alguns escaninhos oficiais do que circulou entre as pessoas desejosas de aprender sobre a Amazônia, a geografia, a filosofia, a literatura, a religião e todos os temas de interesse do homem, que constituíam o universo das atenções de Eidorfe Moreira.
Dias atrás um estudante de geografia, à cata de bibliografia sobre a Amazônia, manifestou total surpresa quando lhe indiquei os livros de Eidorfe. Nunca ouvira falar dele, nem pelos seus professores. A ausência de Eidorfe das obras de consulta e referência é uma das razões para o empobrecimento na forma de perceber a Amazônia. Quando um sábio como ele morre - e como ele morreu - é um pouco de nós que também se vai. Talvez para nunca mais voltar.
LFP @ dezembro 15, 2009
Obrigado!
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